20 novembro 2013

Assento do meio

“Desculpa, Senhor. O senhor deve ter se confundido.”

Foi o que a funcionária me disse há uma hora.  Eu havia escolhido a poltrona da janela, tenho certeza. Confundido nada. Maldito sistema web e toda essa necessidade descontrolada dessas empresas para venderem bilhetes aéreos. Isso é que é confusão.

Agora, aqui estou. Fileira 07, poltrona B, espremido entre uma jovem de vinte e poucos e uma senhora.  Não estou espremido por elas serem gordas, pelo contrário. Este espaço que é realmente desumano.

Não fosse essa estranha claustrofobia, ainda tenho que ouvir as lamúrias da mulher mais velha. Faz uns quinze minutos que ela julgou-me seu amigo e desde então não parou de falar. Santo Deus! Ela estava na janela, e quem senta na janela não tem direito de reclamar sobre nada, essa é a lei da vida.

Começou reclamando sobre o ouvido. A cada dia, escutava pior. Não, não, os aparelhos não adiantavam, já tentara todos. E o trabalho, quanta gente mesquinha, invejosa e falastrona! “Ora, que coincidência!”, pensei. Mas era sobre o filho que ela mais estava falava agora.

Átila é engenheiro elétrico e, pelo que entendi, aos vinte e oito anos nunca tinha namorado sério. Ela, como mãe, ficava preocupada, claro. Afinal, queria que algum dia, ainda viva, fosse avó. Diana, sua filha, ainda era muito nova para lhe dar netos e, além do mais, ainda não se formara. “Filho, só depois do diploma”, frisou.

Queria tanto que o filho abandonasse a vida de festas e arrumasse logo um casamento, que até passou a ser religiosa. Mas, ah... Se ela soubesse. “Se eu soubesse que seria assim, apagava todas as velas que acendi!”

O caso foi que Átila se apaixonou em pleno carnaval por uma loira recém-chegada na cidade. “Era até simpática no começo, sabe? Quando eu ainda não sabia de tudo.”

Não precisei perguntar ou emitir qualquer som ou sinal de curiosidade para que ela continuasse. Ela falava ininterruptamente.

O único porém da moça, segundo ela, era ter uma filha! Uma menina, de três anos. “Aquele panaca tinha que se apaixonar logo por uma mãe solteira, meu Deus?”

A essa altura, a jovem ao meu lado começou a prestar atenção na conversa, e emitiu um claro e sono sinal de desaprovação sobre aquele monólogo.

Além da filha, descobri que a moça também tinha trancado a faculdade de Pedagogia e estava desempregada. “Era muita falta de sorte concentrada em uma só pessoa”, concluiu.

Eu, calado estava, mudo continuei. Para não ser julgado grosso nem nada, lançava às vezes alguns olhares de compreensão. Comecei a folhear a revista da companhia aérea, torcendo para que a senhora compreendesse que queria alguns momentos só pra mim no voo. Em vão.  Por fim, larguei a revista e tentei desconectar de tudo aquilo que estava ouvindo, só reparando em algumas palavras soltas.

“Ai, meu pobre Átila, rezei tanto para que ele encontrasse coisa melhor”. Foi a última coisa que me lembro de ouvi-la dizendo, quando a moça ao meu lado disse, com um tom frio.

“E agora é esta mesma mãe solteira, desempregada e sem graduação, que acompanha a senhora na viagem da sua cirurgia”.

Ainda bem que eu não emiti, em momento algum, nenhum juízo.
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Esconderijos

Carolina, com o seu jeito espevitado de ser, mais parecia um rapaz. Escalava as árvores do sítio, corria atrás dos porcos rosados, gargalhava rolando pela grama e usava as mãos como talheres, tal como aprendera com Sinhá Paula. Dona Ana, sua avó, tentara de todo jeito fazer com que a neta se comportasse como uma dama, mas aquela tarefa estava custando muita paciência e era de pouco retorno.
Em meados de setembro daquele ano, aqueles cabelos negros e olhos travessos surpreenderam a todos na casa, sobretudo à Dona Ana. Carolina estava mais retraída e comedida, coisa que nunca fora. Passava a maior tempo do dia no quarto, deitada na cama, encarando o teto em um espécie de sonho acordado. Ninguém entendia tão repentino comportamento, pois a menina recusava falar. Construíra uma barreira de isolamento em volta de si. E se identificara de tal forma com ela que era como ela fizesse parte do seu próprio esqueleto, sua própria concha.
Escondeu-se. Porque tinha que se apaixonar? Não já estava ela, desde os oito anos de idade, prometida à outra pessoa?
Por mais que lhe perguntassem, não podia contar aquilo a ninguém. Não entenderiam que, quando era apenas uma criança, um velho moribundo profetizou seu casamento com um menino que acabara de conhecer. Não entenderiam os breves, o camafeu e nem as juras caladas.
Decidiu que ia ficar ali, camuflada, o resto daquele fim de semana. Domingos eram dias sempre calmos, sobretudo em Paquetá, e decidiu que não daria chances ao acaso de estragar aquela paz.
Adormeceu.

O Sol já tinha se posto há muito quando Augusto decidiu ir embora. Esperou cicno horas além do combinado, com a tola esperança de que ela aparecesse. Caminhava com um andar triste, quase desacreditado, daqueles que só quem já esperou em vão entende. Pressionou com força o velho botão de esmeralda. Pela primeira vez, tivera a impressão de ter achado o seu camafeu.
          A balsa atracou rapidamente, tal como as oportunidades foram perdidas. No curto trajeto de Paquetá até o Rio de Janeiro, Augusto adormeceu e sonhou com o velho moribundo, a garota de oito anos e a profecia que buscava.

*conto livremente baseado no livro "A Moreninha".
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13 novembro 2013

Vamos marcar


Era isso que ela sempre repetia em nossos encontros. Não importava se estávamos nos vendo naquele momento, acompanhadas por uma xícara de chocolate ou por uma boa taça de vinho, sempre havia a exagerada preocupação com os próximos que viriam. “Vamos, claro.” Respondia, como um mantra. “Mas é sério, viu?!”. Sério, sempre era sério. “Com certeza, temos que nos ver mais vezes!” Uma das minhas táticas mais antigas consistia no ato de concordar, que descobri por vezes evitar maiores delongas. “Você promete? Promete?!” Não importava quantas vezes eu assentisse, essa pergunta sempre reaparecia ao longo da tarde. Quem a assistia pela primeira naquele momento, julgava-a uma pessoa de fácil convivência, quem sabe até carente, mas isso somente por excesso de doçura. Doce. Mal sabiam que aquela pergunta nos acompanhava em todos os encontros.

Para alguns, comentar sobre a vida pessoal, trabalho e atualidades com os amigos poderia ser uma tortura. Mas, para mim, era ouvir aquela frase. Gostava de viver momentos, e ela parecia contente somente com a possibilidade de tê-los. “Vamos marcar.” Ela disse, mais uma vez, no final da carona. Enchi a boca de ar e impedi que certas palavras destrutivas abandonassem minha mente. “O que foi?” Nada. Resolvi que uma boca vazia combinava com aquela relação murcha. E o quão insano era continuar regando-a. Sabia que ela estava esperando a minha ligação – tal como sempre - , e eu, eu sabia que ela nuca ligaria. Desmarcamos.

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11 novembro 2013

Uma maçã e inúmeros copos de água


Penso que quero ser como X. Acredito que o conheço bem para ousar ter tal pensamento, embora tenha plena certeza de que ainda existem nele verdades e hábitos desconhecidos por mim.
X não faz parte de nenhuma família real, embora o nome pomposo induza a tal pensamento.  Na verdade, ele quase que não possui nenhuma família de sangue muito próxima, já que seus pais se separaram quando ele era apenas um menino, e a maioria de seus parentes se manteve distante quando ele e suas irmãs mais necessitavam de amparo.
X C. A. tem em torno de 30 anos, nem tão velho e nem tão novo assim. Sua mãe, que tinha fixação por nomes estrangeiros compostos, teve mais três filhas além dele: S. D., G. I. e S. G., nessa ordem. De origem mineira, a família morou por muito tempo no interior do Rio de Janeiro, antes de se desfazer.
Quando menino, na escola, nunca foi o primeiro da turma. Tampouco fez aulas particulares de inglês – essa e outras regalias eram restritas às meninas da casa. Raramente chegava ao pódio nas competições da natação e karatê.  Com as garotas, era uma tragédia: magro e ossudo, não chamava a atenção de nenhuma delas – e mesmo que algum milagre acontecesse, não tinha dinheiro nem para pagar uma bala na cantina do colégio, muito menos para as entradas do cinema.
Eu sei, é complicado entender porque então essa estranha vontade de ser como ele.
O vi pela primeira vez há uns quatro anos, quando fomos apresentados por amigos em comum em uma das minhas andanças por terras cariocas. Corria então o ano de 2009. Em 2010, nos tornamos mais próximos. E mesmo nos falando com frequência, seja por internet ou por esporádicos encontros, ainda não consegui decifrar quem de fato é X, nem a verdadeira bagagem que ele carrega consigo.
Sei o que ele faz da vida: é estudante profissional. De tão profissional, já está finalizando o seu doutorado em Engenharia de Transportes. Trinta e poucos e doutor, imagina?! Ele também corre. Diariamente, às seis da manhã, você pode encontrá-lo na orla de Copacabana, sempre com o mesmo conjunto preto. Após essa atividade, ele realiza seu habitual café-da-manhã, composto apenas por uma maçã e inúmeros copos de água.
Uma coisa é simples dizer sobre ele: é disciplinado. Sabe que a disciplina é uma virtude fácil de ser quebrada, e por não gostar de quebrar acordos ou votos, preza por ela. De tão disciplinado que fora toda vida, entrou na faculdade, mesmo com tantos problemas em sua família. Não era do seu feitio desperdiçar oportunidades: mudou-se de casa, de cidade, de conceitos. Estudava em pé, frequentava lan houses, alugava livros, e finalmente graduou-se.
Quando você tiver a oportunidade de encontrar com ele, saberá exatamente a sensação que sentia no início de nossas conversas. Primeiro, uma manifestação banal de admiração. Posteriormente, uma ligeira inveja daquele modo simples e determinado de ser. Não se sinta intimidado se achar que ele é melhor do que você, porque ele provavelmente é, e isso não é necessariamente ruim. Ele é claramente superior a pelo menos 80% dos seres humanos que habitam este planeta, ele é claramente de uma forma que eu também queria ser.
Primeiro, ele está sempre disponível. Pode parecer coisa pouca, mas são raras as pessoas que hoje em dia possuem tempo para isso. Ajuda um grupo com muitas velhinhas em tarefas heroicas como comprar passagens aéreas por internet. Lidera serviços recusados por outros. Faz longas viagens só para que o motorista, algum amigo ou conhecido, tenha com quem conversar e revezar o volante. 
Depois, ele nunca está de mau humor. Mesmo dividindo apartamento com estranhos desde que passou a morar no Rio, mesmo vivendo apenas com a curta bolsa do doutorado, ele sempre tem um sorriso para oferecer. 
Há diversas outras coisas que eu poderia contar aqui para reforçar a personalidade única de X. Ele quase não fala, a não ser quando já possui devida intimidade com a pessoa. Mas é um poço de educação. Não dança, a não ser que seja valsa. Não canta, a não ser que seja para a mulher que ama.
Tenho muito mais que aprender sobre X, mas o pouco que descobri através da minha característica petulância me faz querer descobri-lo mais a cada dia, absorver, como que por osmose, um pouco da sua constância, disciplina, silêncio e resignação. X sabe aceitar o que o destino lhe reserva, mesmo não despejando toda a sua confiança no acaso. Apesar de ter infinitas possibilidades à sua frente, caminha sem afobação, observando a paisagem e sentindo o vento cortar-lhe à face.
Ao vê-lo caminhando de tal forma, sinto-me impelida a acompanhar seus passos. 

* Escrito no dia 20 de outubro, na oficina de escrita criativa: contos, ministrada por Katherine Funke.
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O roubo

             Lili Moreira Sá tinha onze anos e como a maioria das crianças, brincava de ter preferências: amigos, cores, objetos, lugares. Falando neste último, o lugar favorito dela ficava no final da rua das Pitangas, na pequena cidade de Poty, dois quarteirões após a casa de sua avó Ana.
                Ela gostava de ir naquele local especialmente no final do dia, quando Sol coloria o céu antes azul anil com tons quentes.
                No meio de tantas pessoas perambulando pelos vazios de verdes, ela gastava seu tempo com um tipo em especial: com aquelas que estavam acompanhadas por um livro. Velho, novo, bíblia ou auto-ajuda, para ela essas descrições não importavam. Costumava passar minutos, ou até mesmo horas estudando aquelas pessoas.
                Até que o Sol, que antes lhe queimava a pele, começava a esfriar. Sabia, então, que era chegada a hora de agir. E, sobretudo, que o tempo era curto.
                Posicionava-se estrategicamente, provocava propositalmente um ruído distante ou qualquer outra distração e ZAZ, roubava o livro. Saia sorrateiramente, tal como uma profissional.
             Lili fingia-se acreditar que tinha com essas pessoas um acordo velado: se as pessoas podiam usufruir sem a sua permissão do seu lugarfavoritonomundotodo, a ela era permitido, em consequência, levar as palavras delas.
                Enquanto os leitores levavam consigo, inconscientemente, uma parte de Lili e do seu lar, a garota ficava também com uma parte delas.


* Escrito no dia 26 de outubro, na oficina de escrita criativa: contos, ministrada por Katherine Funke.
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Editado por Agnes Carvalho. Imagens de tema por andynwt. Tecnologia do Blogger.

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